sábado, 28 de janeiro de 2012

ERA UM HOMEM



“Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45)

O corpo que vi arremessado era um homem. Foi tudo muito rápido, mas deu para divisar seu aspecto. Por muito pouco não me envolvi no acidente. Logo entendi que o barulho foi o choque do carro contra a bicicleta cargueira, que se transformou num monte de ferro retorcido.

Era um homem! Simples, certamente. Bicicleta cargueira é instrumento de trabalho de pessoas simples, de homens simples. Mas era um homem, com certeza. Passei bem perto e devagar. Com o rosto voltado para o asfalto, agonizando ofegante, qual animal abatido em temporada de caça, o homem parecia respirar como se estivesse puxando o último fôlego de vida. A perna direita se mexia em espasmos desordenados, mas só isso... “Meu Deus... será que está morto?”.

O que fazer? A vida corre e o trânsito precisa fluir. Sigo assustado e pressionado pelos carros que pedem passagem, monitorando a cena pelo retrovisor. Pessoas logo se aglomeram. Muita curiosidade, pouca piedade. No máximo, tentamos fazer algo à distância. Pelo celular tudo se resolve – “Tem um corpo estendido na avenida tal, pode mandar uma ambulância?”. O final da história será sabida amanhã nas páginas policiais. Enquanto isso, nas planilhas oficiais mais um número será acrescido. A vítima? Era um homem!

A morte ronda a sociedade, e já nos acostumamos com ela. Quem se importa com um homem atropelado? “Afinal, foi ele, não eu! Bola prá frente, ou melhor, carro prá frente”. Mas é difícil. Não é uma pedra no meio do caminho, é um homem. Eu vi que era um homem.

Na indiferença que nos envolve, queremos seguir adiante, deixando para trás corpos estendidos nos asfaltos da vida. Na ilusão de que isso seja possível. Esquecemos que ali nós também ficamos. O homem não está só. Um corpo estendido na avenida é um grande peso que se abate sobre muitos. Na morte de cada um, morre um pouco de todos nós. Mas quem sente esse peso? Por que se incomodar? Não nascemos para morrer? Foi ontem e será amanhã. O trânsito corre, e nós precisamos fluir. Era apenas mais um homem.

Com profunda percepção, própria dos grandes poetas, Cecília Meireles toca na alma de todos nós e denuncia...

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Indiferença é o grande mal que nos aflige, um subproduto do egoísmo, onde cada um pensa apenas nas suas próprias feridas. Se não foi comigo, não tomo conhecimento. Enquanto o Senhor nos manda ser próximos dos que precisam, preferimos manter distância.

Velhice, acidente ou doença nos ferem, mas o que nos mata mesmo é a indiferença. Por ela deixamos de ser homens e nos tornamos números e manchetes. Por mais dolorosa que seja a cena, não podemos virar o rosto e seguir. Aqueles corpos jogados são pessoas feitas à imagem de Deus. Não são corpos somente, são homens.

Vivemos num tempo crítico e cheio de perigos. O mundo se desintegra ante os nossos olhos. Mas onde há maior necessidade, maior pode ser o amor. Assim, ao contemplarmos os grandes desafios e os dolorosos sofrimentos a nossa volta, não fujamos, nem fiquemos a lamentar. Aproveitemos a oportunidade para mostrar o grande amor de Deus.

Dá para perceber? Pessoas necessitadas estão a nossa volta. Se não estão feridas no corpo, muitas estão feridas na alma. A cicatriz pode não ser visível, mas a dor não é menor.

Não dá para não se importar... Era um homem.

A serviço do Mestre,
Pr. Jenuan Lira

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